Não satisfeitos em denunciar a corrupção ou a inépcia dos poderes públicos e privados, alguns programas jornalísticos estão tomando para si a tarefa de resolver com as próprias mãos os problemas que apontam.
Tratei deste problema em fevereiro, num artigo publicado na “Folha”, no qual batizava como “jornalismo justiceiro” iniciativas lamentáveis que estavam aparecendo na televisão, em especial nos programas “CQC”, na Band, e “Legendários”, na Record.
Escrevi, na ocasião: “O ‘jornalismo justiceiro’ é primo de outras formas de ‘fazer justiça com as próprias mãos’. Mais que autoritário, revela o desconhecimento das regras sociais numa sociedade democrática. O desrespeito à lei não pode justificar outros desrespeitos.”
E disse ainda: “O repórter Elcio Coronato, do ‘Legendários’, da Record, está se especializando nesse tipo perigoso de jornalismo que é chamado pelo criador do programa, Marcos Mion, de ‘do bem’.”.
Citava como exemplo duas reportagens de Coronato no qual ele agia como policial. Na primeira, para demonstrar o desrespeito à reserva de vagas para idosos em shoppings, o repórter impediu com seu próprio carro que motoristas deixassem o local e os obrigou a ouvir seu sermão sobre o assunto.
Na segunda, para mostrar a falta de fiscalização de estacionamentos irregulares em São Paulo, Coronato passou por uma rua recolhendo cones usados por guardadores particulares para reservar vagas em espaços públicos e, depois, foi à porta da CET e os despejou na calçada.
Neste sábado, como já havia sido antecipado e, de certa forma, festejado pelo próprio “Legendários”, Coronato alcançou a glória maior: levou um soco de um entrevistado. O momento consagrador (foto acima) ocorreu durante uma reportagem sobre motoristas que dirigem supostamente embriagados.
Não assistia ao “Legendários” havia alguns meses. Fiquei espantado ao ver que Marcos Mion apresentou Coronato, orgulhosamente, como “nosso legendário justiceiro”, assumindo como positivo algo com péssima conotação.
“Elcio Coronato foi às ruas impedir, tentar impedir, bêbado de dirigir”, anunciou Mion. À porta de uma casa noturna, o repórter tentava convencer quem saía do local a fazer o teste do bafômetro, uma prerrogativa da polícia, e discursava sobre os riscos de dirigir alcoolizado.
O repórter convenceu três jovens a deixar o carro no local e voltar para casa de táxi. Para isso, pagou ao taxista com dinheiro da Record. Foi xingado por outros motoristas e, finalmente, levou um soco de um, incomodado com a câmera que o filmava e a abordagem de Coronato.
“Parece que agredir repórter tá virando moda… Ele tava tentando impedir que o cara dirigisse bêbado… O que a gente viu é que nem todo mundo quer ser ajudado. Nem todo mundo aceita ajuda”, disse Mion.
Apresentador e criador do programa, Mion disse ainda: “Temos muito orgulho de ter exibido essa matéria. A gente fez a nossa parte. A gente tentou evitar que as pessoas pegassem seus carros. A gente quer conscientizar todo mundo. A gente quer passar uma mensagem”.
Mion parece acreditar no equívoco que está cometendo. Não sei se está sendo sincero, mas talvez não tenha noção, realmente, do que está promovendo. Será que não conhece, por exemplo, a história das milícias, que surgiram para ocupar um vácuo deixado pelo poder público em favelas cariocas e, depois de expulsar os traficantes, se tornaram uma espécie de poder paralelo ainda mais violento e nocivo que os alvos do seu trabalho de “limpeza”?
Ao se fazer de vítima, o programa comandado por Mion finge ignorar que Coronato foi responsável direto por provocar a agressão. Jornalista não é polícia ou juiz para exigir teste de bafômetro ou dar lição de moral, com a câmera ligada, para ninguém, nem mesmo a um motorista embriagado.
Veja abaixo a reportagem:
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