Em 1991, estreava no SBT, a novela infantil mexicana Carrossel, produzida entre 1988 e 1990 pela Televisa. Foi sucesso imediato. A atração chegou a incomodar seriamente a programação da Rede Globo, que precisou tomar atitudes de caráter emergencial para frear a perda repentina de audiência, esta migrada para a emissora rival.
A novela foi um fenômeno tão retumbante que virou matéria da capa da revista VEJA, em sua edição nº 1186, datada de 12 de Junho de 1991.
Eles estão na faixa dos 6 aos 8 anos de idade e têm nomes como Cirilo, Maria Joaquina e David. Alguns são loiros, mas a maioria tem a pele morena e os olhos de índio. Usam uniformes sóbrios e têm dificuldades na escola, com os amigos ou em casa. Sua professora, Helena, usa vestidos abaixo do joelho, decote fechado até o pescoço e lembra-se de passagens da Bíblia para transmitir ensinamentos à garotada. Essas são as estrelas de Carrossel, a novela mexicana que o SBT exibe diariamente às 8 da noite. Carrossel mostra tudo aquilo que se costuma considerar pobre, atrasado e brega na televisão brasileira: o cenário é rústico, os diálogos são declamados e os personagens, esquemáticos. Não se vêem mulheres de sensualidade deslumbrante, carros último tipo, cenas de violência, nudez, erotismo ou palavrões. Para piorar as coisas, a dublagem é péssima. Quinze dias depois de sua estréia, Carrossel produziu a mais espetacular reviravolta da televisão brasileira dos últimos anos, uma virada mais profunda que a de Pantanal.
A turma mexicana vai ao ar às 8 da noite, quando a Rede Globo exibe o Jornal Nacional, programa de maior audiência do país e espinha dorsal de sua milionária programação no horário nobre. Antes de Carrossel estrear, há três semanas, o SBT tinha 6% da audiência no horário, contra 54% para o Jornal Nacional. Agora, a platéia do SBT atingiu a faixa dos 21 pontos, enquanto a do concorrente caiu para 41. Mais tarde, na Globo, Cid Moreira se despede dos espectadores e o noticiário do dia dá lugar ao romance entre Malu Mader e Antônio Fagundes na novela O Dono do Mundo. Escrita por Gilberto Braga, considerado o mais competente novelista brasileiro da atualidade, O Dono do Mundo é um luxo só. A produção tem pretensões cinematográficas, os diálogos são em ritmo acelerado e o elenco é de primeira. Não faltam banquetes de milionários, casais adúlteros, frufru de lençóis, moças de vida incerta, diálogos picantes, tipos engraçados e galãs para diversas faixas etárias. Conversas em tom psicanalítico sobre os traumas dos personagens também são freqüentes, assim como críticas sutis à realidade social do país. Tudo inútil.
O GALOPE DO SBT
Média de audiência da Globo e do SBT entre 8 e 9 da noite, nas três últimas quartas-feiras.
No horário, o SBT apresenta Carrossel e a Globo, Jornal Nacional e O Dono do Mundo
A novela anterior da Globo, Meu Bem Meu Mal, que em seu tempo foi considerada um desastre, se encerrou com 56 pontos no Ibope. O Dono do Mundo estreou na mesma noite que Carrossel e sua audiência está parada nos 41. No mesmo horário, a professora Helena e seus alunos já chegaram a 21 pontos (veja quadro acima). É verdade que, com seus 21 pontos contra 41 do concorrente, a turma mexicana do SBT dispõe de pouco mais da metade dos cerca de 40 milhões de telespectadores da Globo e, até agora, não alcançou sequer os 40% que a Manchete conseguiu no ano passado com Pantanal. Mas também é verdade que pela primeira vez uma emissora concorrente conseguiu cravar uma estaca no coração da Globo, em que o Jornal Nacional é uma espécie de alavanca que recolhe uma audiência mais modesta na novela das 7, engorda-a ao longo de suas reportagens e assegura uma boa musculatura para a atração seguinte, a novela das 8. A Manchete já teve mais audiência que a Globo com Pantanal, mas nunca num confronto com os carros-chefes da programação global.
TENDÊNCIA — Pode-se aguardar pelos 180 capítulos de O Dono do Mundo e pelos 200 de Carrossel para adivinhar o que irá acontecer daqui para a frente, mas agora a astrologia da audiência favorece o SBT. “Quando se trata de uma programação contínua, como uma novela, dificilmente se inverte a tendência inicial observada nas pesquisas”, afirma Carlos Augusto Montenegro, diretor-executivo do Ibope. “A Globo vai reagir, mas mesmo assim a perspectiva de Carrossel é subir ainda mais”, afirma Rubens Furtado, superintendente-geral da Rede Bandeirantes. Contra Pantanal, a Globo colocou filmes milionários, nudez e mexeu nos horários de sua programação. Contra Carrossel, não pode trocar Cid Moreira e Sérgio Chapelin por Xuxa e Simone, nem exibir .E o Vento Levou no lugar do Jornal Nacional. No máximo, pode mudar O Dono do Mundo. E é o que está fazendo, num ritmo frenético, desde a semana passada. Todos os dias a Globo conta com os adultos com ar debilóide da Escolinha do Professor Raimundo para massacrar os concorrentes no fim da tarde. Agora, tem as crianças mexicanas da Escuela Mundial da professora Helena nos seus calcanhares. Escrita por um novelista chamado Abel Santa Cruz, que há anos mudou-se do México para a Argentina, Carrossel é um desses fenômenos que a televisão só consegue produzir de tempos em tempos. É, basicamente, um programa que traz aquilo que o espectador mais procura quando liga sua televisão: entretenimento, numa feliz combinação de novidades com discussão de questões que seu público-alvo enfrenta no cotidiano. Por exemplo:
• Num horário dominado por atrações oferecidas aos adultos, Carrossel é uma novela para crianças, interpretada por crianças. Os institutos de pesquisa confirmam aquilo que qualquer pai e mãe de família já puderam constatar por experiência própria. No horário das 8, são os filhos que têm o direito de brigar, gritar, xingar e espernear para assistir ao programa de sua preferência. O pai, que passou o dia no trabalho, não vai criar caso com a filha porque quer ver no Jornal Nacional a quantas anda a apuração da bilionésima fraude da Previdência, ou qual o jeito que Alexandre Garcia encontrará para elogiar pela trilionésima vez o governo Collor.
• Carrossel é um programa infantil mesmo. Os diálogos vão direto ao ponto, o caráter de cada personagem é definido assim que ele aparece em cena pela primeira vez. Bom é bom, mau é mau.
• É uma novela ágil. Não há uma trama central que se arrasta durante meses até que o mocinho fique com a mocinha (ou vice-versa), mas uma seqüência de problemas da vida cotidiana que são solucionados em poucos capítulos. Na versão original, apresentava-se e resolvia-se um pequeno drama a cada dois capítulos. Na versão exibida pelo SBT, em que se somam dois capítulos a cada noite, assiste-se ao começo, ao meio e ao fim de um problema na mesma hora.
• Carrossel fala de problemas do dia-a-dia do público: do menino que não fez a lição de casa, do pai que não tem dinheiro para comprar uma bola de futebol para o filho, da menina que tem dificuldade em se enturmar na classe, do garoto frágil espezinhado pelo grandalhão na hora do recreio.
• A novela é destinada ao público mirim, mas como todo adulto já teve uma experiência escolar ele pode se identificar com as situações mostradas em Carrossel. Chico Anysio já explicou o sucesso de sua Escolinha junto aos adultos com esse argumento. Escola é um filão rico nas artes. Ele está presente tanto no romance O Ateneu, de Raul Pompéia, como nas histórias em quadrinhos de Charlie Brown e em filmes como Ao Mestre com Carinho (alguém ainda lembra de Sidney Poitier no papel de professor?) e Sociedade dos Poetas Mortos.
CONTRA-ATAQUE — “Entre assistir às novelas da Globo, que exploram cenas de sexo, algumas constrangedoras, e Carrossel, admitamos que a segunda opção é um mal menor”, afirma Silvio Santos. O ibope da novela das crianças é fruto da inspirada visão de Silvio Santos para assuntos televisivos. Dias antes de levá-la ao ar, o empresário aceitava apostas de 100.000 dólares contra quem duvidasse que a média da audiência da novela passaria da marca dos 10 pontos. Silvio Santos resolveu pagar 10.000 dólares para cada capítulo de Carrossel logo depois de assistir à novela numa viagem aos Estados Unidos. O SBT também contou com um lance de sorte em sua investida. Carrossel foi adquirida num pacote com outras três novelas. Pelos planos iniciais de Guilherme Stoliar, um dos executivos do SBT, Carrossel não era a grande atração a ser levada ao ar imediatamente. A prioridade deveria ser dada a outras produções. Acontece que apenas Carrossel e a novela que vai ao ar logo em seguida, Rosa Selvagem (que tem premiado o SBT com um ibope na faixa dos 11 pontos), estavam disponíveis no armazém da Televisa mexicana. Por isso elas vieram primeiro e estrearam na frente. Se fosse obedecida a cronologia concebida pela inteligência opaca de Stoliar (que só está no SBT porque é parente do dono), as crianças que hoje se divertem com Carrossel continuariam no sereno.
Atingida no centro nevrálgico de sua programação, a Globo armou um contra-ataque profissional. No domingo dia 2, Gilberto Braga reuniu-se com Leonor Brassères e Angela Carneiro, que o auxiliam a escrever a novela, e deu uma garibada em dez capítulos numa só tacada. Outras mudanças serão feitas a curto prazo. Em suas linhas gerais, como o conflito da moça de subúrbio com o cirurgião plástico rico, bem-sucedido e inescrupuloso, O Dono do Mundo fica como está. O que muda é o tom. A viúva Márcia, que até há pouco levava sua vida numa boa, irá passar por uma jornada de sofrimentos cruéis, que terá início com sua expulsão de casa. “Quando a heroína é mal compreendida, tem que sofrer para purgar seu crime e ser aceita pela sociedade”, diz Fernanda Montenegro, que faz a cafetina de luxo chamada Olga.
Com informações do site Museu Nostalgia.
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